O circo e as redes sociais
Minha reação ao receber um convite para ir ao circo foi pensar na existência do circo. Os outdoors na rua estavam lá indicando, na sequência, que o circo está na cidade, mas poucos veem porque, estando no carro, quem está dirigindo nem presta atenção direito e quem está de carona geralmente está com a cabeça para baixo vendo qualquer coisa no celular.
“Vamos, uai”, respondi.
À noite, o circo brilha, mostra suas luzes todas e ganha vida. Usa aquele espetáculo de cores como um alarme pedindo encarecidamente para que, de última hora, os vários alguéns se compadeçam e larguem aquele maldito aparelho que nos prende a um mundo digital por alguns minutos que sejam. Durante a semana, a missão falha miseravelmente: o circo está longe de lotar.
Até pode ser pelos preços, que, começando a cinquenta lulas por pessoa, mesmo sendo metade para crianças, pesa. Porque tem o algodão-doce, a pipoca, o refrigerante e o crepe que acabam entrando na balança e são salgados como um todo. Mas a disposição da plateia em torno do palco mostra que poucos se entregam com suas famílias nos setores mais caros, deixando à mostra as várias cadeiras simples e pouco confortáveis.
O espetáculo começa com sete meninas em uma coreografia que precisa de um ajuste final, depois traz o palhaço que tem a função de ser palhaço em vários momentos, chamando o público ao palco, pedindo palmas, pedindo mais palmas, pedindo muito mais palmas, aí, satisfeito com as palmas, joga água em alguns e pipoca na cara de outros, depois vem a moça fazendo malabarismos com o tecido, subindo nele como em um pole dance frenético, aí vem o casal que vai trocando de roupa e confundindo a cabeça sobre como aquilo é feito sem que ninguém perceba, o palhaço volta e bota medo no público que teme em não ser chamado para participar das palhaçadas, depois vem o ato da moça que é cortada ao meio e de repente aparece na ponta do palco, o locutor pede o intervalo, as pessoas buscam ali uma água ou vão ao banheiro que remete ao de um aeroporto, as pessoas voltam, o espetáculo é retomado lá em cima, com moças e rapazes se deslocando pelos trapézios, depois vem o globo da morte com quatro motos que, pelo momento da vida, me remeteu ao Rali Dakar, e o palhaço volta para fazer malabarismo com três chapéus, chamar seus demais colegas e dar adeus ao respeitável público.
Foram 80 minutos de nossas vidas entregues a um divertimento que está lá há 175 anos, e a mente vai longe, compondo a timeline deste tempo, pensando em um mundo lá do século XIX mais purista, avançando aos últimos anos, de pandemia aos momentos atuais, de pensar em como esta gente sobreviveu e que precisa mesmo, quase em tom de piedade e dor, que o povo assimile que o circo abre suas portas e emprega profissionais dedicados por horas àquilo, e por aí se entende por que, na entrada, a pessoa pergunta como se soube da existência do circo, e sorri quando vê que alguém viu aqueles outdoors, e indiretamente convida a sair do mundo nefasto em que nos acostumamos a viver em torno destas redes sociais que, sem nenhum pudor, abriram a caixa de pandora da discriminação e da mentira e nos desafiam a participar deste jogo ‘Round 6’ que vai nos matando aos poucos.
É estranho ver que o comportamento geral de adultos que lá estão é de se permitir ir, de peito aberto, para simplesmente gostar do circo. Como se a alegria da nossa vida estivesse concentrada nas nossas mãos através de um aparelho que a cada dois anos precisa ser trocado para nos dar mais alegria, sendo que os aplicativos que ali estão nos transmitem raiva, desgosto e desilusão. Há muitas coisas que o circo precisa melhorar para se adaptar a estes tempos, mas a função básica dele, a de entreter, está ali. O circo cumpre.
Pois eu agora convido: vá ao circo. Troquemos as redes sociais pelo circo. Encarecidamente. Não sejamos nós os palhaços neste globo da morte dos tempos atuais.
Crônica que abre a coluna 6ª Marcha, que será publicada às sextas-feiras