Monarkia do crime

Toda vez que se abre um processo seletivo no Grande Prêmio para recém-formados ou estudantes de Jornalismo, sempre pingam as mensagens na linha “eu não sou jornalista, mas escrevo bem, domino o assunto, amo F1, assisto F4 Etíope, posso me candidatar?”. É até compreensível por quem faz a solicitação, mas deixa evidente algo que talvez não percebam: a precarização do papel do jornalista. Porque quem escreve essa mensagem pensa apenas que escrever e/ou se comunicar bem basta para exercer uma profissão em que não é formado. Tem veículo que permite isso, o que também põe a culpa neste meio que sabe se desvalorizar.

Indo além no processo seletivo, é importante ser sincero: o nível dos formandos atuais beira o desespero. No GP, são 15 anos, com intervalos, que realizamos esta avaliação; o mais recente tem semanas. A primeira fase consistia em mandar um texto analítico com o seguinte tema: “O que esperar da F1 2022 – e no mundo afora?”. Havia uma indicação – que deveria ser desnecessária – para que agregassem informações. Houve uma desclassificação sumária: a de um(a) candidato(a) que escreveu um miserável parágrafo de cinco linhas. Tem sempre a turma que compõe um texto acompanhada de um petisco em formato de vírgulas, jogando os acepipes entre as linhas para encaixar em algum lugar; tem quem adora ver uma letra ‘a’ solta para encaixar a crase nela – ou, para completar o rebosteio, taca o acento agudo mesmo; e tem quem não entende o que é para ser feito. É um tiro bem dado na cloaca. Isso, no entanto, não é razão para se considerar alguém fora do meio.

O negócio deveria ser simples: se tiver uma vaga de advogado para um escritório, eu não vou me candidatar porque eventualmente sei as leis; ser bom em matemática não me dá aval para cobiçar um estágio ou trabalho em Engenharia; saber capitais e bandeiras não faz de mim um possível professor de Geografia. Se o cenário é tenebroso, a solução não está no lado de lá do muro. Porque há quem se destaque – como aconteceu neste processo do GP e passou a compor o time. E há responsabilidades claras por quem exerce a profissão que deveriam ser aprendidas na formação de pelo menos quatro anos.

Dito isso, não sou contra quem se julga no direito de produzir conteúdo, o lindo eufemismo utilizado para o não jornalista ou comunicador. Tem lá o influencer, o youtuber, o tiktoker, o instagramer, sei lá se vai ter o metaverser ou o NFTer, mas tem gente que se acha e ganha dinheiro e faz a roda girar, e assim vai. E aí tem a geração que achou seu filão em podcast. Chega-se ao tal rapaz que hoje, dizem, ter o maior podcast do Brasil.

Acompanho com bastante restrição estas gentes que brotam pelas (des)graças das críticas que as deixam ainda mais famosas. Um cara surge do nada, começa a apresentar um programa com som puro e estéreo, embala o nenê com uma cara apresentável para que o áudio tenha imagem, investe em recursos e cresce em cima de fazer polêmica. A primeira lhe dá projeção, a segunda lhe traz mais audiência e, em cima das progressões geométricas, leva a uma explosão que atinge milhares e milhões. O conteúdo, travestido de informalidade e descontração, é vazio em um primeiro momento. O conteúdo choca pela falta de conteúdo. O que quem ouve teima em não entender é que isso é planejado.

O tal rapaz com alcunha de marca de bicicleta lucrou muito e levou muitos a seguirem o mesmo caminho. Chamam isso de democratização da informação; eu definiria como proliferação do nada. É o Seinfeld da comunicação. Mas aí usam o jovem como desculpa, porque atinge os jovens, porque os jovens se conectam com este tipo de formato, porque os jovens são mais descontraídos. Jovens. Os jovens me preocupam, porque entendia que o que falavam sobre os jovens não era sério. Mas é muito sério. E alimentando esse ecossistema, para falar com os jovens, gentes importantes se convencem – ou são convencidas – a participar dos programas deste rapaz e de seus clones. Grandes marcas, impressionadas apenas com números de engajamento e alcance, derramam suas benesses financeiras ou em formato de permutinhas. O rapaz quer mais. Os olhos crescem. Ele junta outros, forma sociedades, abre gama de empresas. Ele quer mais. E aí não é que forma uma bola: forma um balão. Que, claro, uma hora vai estourar.

Porque, ao crescer, a demanda pessoal tem de crescer. E aí quem não tem conteúdo vai mostrando o que é. O tal rapaz é um cretino de marca maior que não se preocupa com o que pensam dele. É um bostinha liberal que tem a função de jorrar sua falta de conhecimento. Só que quando quem está ali na sua frente tem um peso ou se o assunto requer um estudo mínimo, o papel de burro é insuficiente e vem à tona a essência em si. Já não era de hoje que seus ‘pensamentos’ eram vomitados com um pé no crime, que as marcas que lhe apoiavam eram, na verdade, sabões jogados no pano. Aí veio sua defesa clara ao nazismo à frente de dois parlamentares – um deles execrável, a outra dispensável.

A terça-feira foi toda em função disso: as marcas, minha nossa, soltando comunicados só depois da pressão popular dizendo que não compactuavam com a fala, puxa vida, e teve marca que ainda vem com o oh!, que absurdo!, a gente não patrocina e só fez ações pontuais, que absurdo!, vamos pedir para tirar nosso logo de patrocinador, meu deus!, que absurdo!, e aí quem participou desta coisa em formato de áudio agora vem oh!, por favor, tratem de apagar o episódio do qual participei, como assim?, me sinto ultrajado, não posso ter meu nome envolvido nisso, que absurdo!, e quem ia participar agora solta nota, uau!, dizendo que não vai mais participar, como se não tivesse consciência de quem era o apresentador e o que ia encontrar lá, como se não quisesse ganhar palco com o eco daquela privada, como se não atuasse para encher este grande balão, um balão não de ar, mas cheio de merda, mas a merda era muito clara, clara e densa, e quiseram participar disso. E então veio a resposta do cretino maior: sem desculpas e colocando a culpa na bebida. Deve ser uma bebida bem forte, esta que libera o nazismo que a sobriedade esconde.

O (i)mundo tem se locupletado destas gentes podres. Não é uma primazia de não profissionais: tem os coleguinhas diplomados que são editorialistas de jornais e nem tão jovens pans. No fim, pertencem a uma mesma milícia de comunicação que germinou nos últimos três anos protegida pelo bolsonarismo. O resultado: o embasamento da opinião de iguais imbecis. Quando se fala em regulamentação de mídia, absurdamente necessária, bradam pela liberdade de imprensa. E neste ecossistema, vão colecionando transgressões e engordando suas contas.

Tem outras gentes produzindo conteúdo excelente, conteúdo de fato, que teriam de ser apoiadas. Que têm ciência de que jornalismo – ou produção de conteúdo – tem suas responsabilidades. Que entendem que, por trás de um programa em qualquer plataforma, é necessário estudo e conhecimento. Estas gentes não são plenamente apoiadas por um motivo: a ignorância é um meio de vida muito mais rentável. Quando se passa de todos os limites, é tarde, porque a merda já está espalhada no esgoto. O crime compensa na comunicação de um país debruçado em notas de repúdio – geralmente mal escritas.

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