Arábia Maldita

A decisão de ter e manter um GP da Arábia Saudita com uma alegação tipo ‘la garantia soy yo’, sem se escorar em uma razão minimamente plausível ou mesmo racional, mostra a que a Fórmula 1 se presta. Mostra que não presta

Dava para ver claramente as chamas e as cinzas da refinaria acertada por um míssil a 10 km de qualquer ponto do circuito de Jedá. O ataque, assumido pela milícia Houthi, do Iêmen, é o segundo em seis dias àquele local que pertence à Aramco, a petrolífera local. Nesta sexta-feira (25), aconteceu entre o fim do treino livre 1 da Fórmula 1 e a classificação da Fórmula 2. O foco da FIA e da organização do GP da Arábia estava em fazer os carros andarem na pista.

Há mais de sete anos o Iêmen vive uma guerra civil provocada por estes rebeldes e que levou Arábia Saudita e Emirados Arábes a se unirem, com a bênção de Estados Unidos, Reino Unido e França, para atacar aquele país. O conflito se intensificou neste ano. Segundo a ONU, mais de 377 mil pessoas já morreram no Iêmen e mais de 10 mil crianças estão ou nesta conta ou feridas. Mais de 80% da população precisa de assistência humanitária e proteção. 19 milhões de iemenitas passam fome. Não há cuidados médicos e sequer água potável.

A tragédia daquele povo não põe bandeirinha ao lado da arroba no Twitter. O mundo não conta a ninguém. O Iêmen não fica na Europa.

Mas se o mundo não conhece nada de Iêmen, sabe bem quem é a Arábia Saudita, seu desrespeito a direitos humanos, às mulheres e às minorias, comandada por um ditador que impõe restrições religiosas e políticas e que, na ponta final, leva a punições cruéis, penas de morte e execuções brutais. O que faz a Arábia ser aceitável é o dinheiro e o petróleo. E se falou em dinheiro, a Fórmula 1 abraça.

A Fórmula 1 topou correr no Bahrein, ainda sob comando de Bernie Ecclestone, quando aquele país passava por uma guerra civil e por condições que não são muito diferentes das vistas na Arábia. Não se pode dizer que a categoria era incoerente: fez o mesmo na África do Sul nos tempos de apartheid. Quando assinou o contrato para correr em Jedá, pois, a F1 se aliou a tudo que havia de pior em termos humanitários para engordar seu caixa. A Aramco – a mesma companhia que tem sido atacada pelos Routhis – é a ponta de tudo isso: basta reparar em qualquer lugar em que se busque a F1, seja no mundo digital ou nas pistas, como besuntam o logo em todos os cantos.

Assim, Stefano Domenicali, Ross Brawn e quem quer que seja da cúpula da Fórmula 1 e da FIA não podiam fazer cara de espanto e surpresa com o fogaréu ali do lado deles. Foram e são eles que, direta ou indiretamente, deram respaldo a tal situação. Mas, embora esperado, espantoso mesmo é o que estas gentes falaram após as duas reuniões que fizeram às pressas para decidir se haveria GP ou não. Disse Domenicali: “Pessoalmente, eu me sinto absolutamente seguro. Se não fosse assim, eu não estaria aqui”. Realmente alentador. Daí veio Mohammed ben Sulayem, o novo presidente da FIA: “Estão atacando a infraestrutura, não os civis e, obviamente, não a pista. Checamos os fatos e temos garantias do mais alto nível de que este é um lugar seguro. Vamos correr”, minimizou o dirigente, que é emiratense e, pois, deve saber como seu país contribui para tal situação. As tais garantias vieram de uma delegação saudita que participou da segunda reunião.

Ficam, então, as seguintes perguntas: se os sauditas sabem que teoricamente os Houthis só atacam infraestrutura, como é que eles, ao menos nestes seis dias, não fizeram um esquema de segurança para um alvo tão importante para a economia saudita como a refinaria da Aramco ou não se preocuparam em evitar o ataque como forma de maquiar – sportswashing incluso – com a chegada da Fórmula 1 o conflito? Quem é que banca mesmo que os Houthis não atacam civis em um cenário que já matou quase 400 mil pessoas? Domenicali e sua trupe têm exata dimensão do conflito? Quem é Domenicali na fila do pão que falta ao Iêmen para ser a voz da garantia de uma série de vidas em meio a este conflito?

Cêis vão me desculpar, mas não me entra na cabeça que, depois de meia hora deste ataque, não tivesse ninguém pegado suas coisas e partido para o aeroporto mais próximo para vazar o quanto antes de Jedá. Ninguém, nem o mais alto representante da Defesa saudita, tem a mais puta ideia de garantia de segurança àquela gente. Os Houthis ajudaram a matar seu povo; por que se preocupariam com as vidas de meros pilotos de carros de corrida?

A decisão de ter e manter um GP da Arábia Saudita com uma alegação tipo ‘la garantia soy yo’, sem se escorar em uma razão minimamente plausível ou mesmo racional, mostra a que a Fórmula 1 se presta. Mostra que, aparte ser um evento esportivo de alta competição, não presta.

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