Por que a ‘corrida’ belga representou uma vergonha

SÃO PAULO – Primeiro de tudo, uma não-corrida dá tanto ou mais trabalho que uma corrida. Lá pelas 9 e pouco da noite de domingo, conversava com Evelyn Guimarães que me sentia, naquele momento, na sala de imprensa de Interlagos ao lado dela, entre definição de conteúdo e comentários aleatórios, pronto para fecharmos o espaço.

Pouco vou discorrer sobre a decisão de não correr na Bélgica: ela é absolutamente correta. Pouco, também, me importa a visão de quem olha para trás e baseia os argumentos colhões de que as coisas eram diferentes nos tempos de Schumacher, Senna, Ickx, Moss, Fangio, Nuvolari, Júlio César ou Noé. Se quer consumir o passado, vai lá ver o Discovery History ou o Viva. Se a F1 quer manter seus pilotos seguros e vivos, é assim de tem de ter, e ponto.

O ponto é a linha do tempo que levou à decisão de não correr na Bélgica. É acompanhar em detalhes – e os tempos atuais de redes sociais são preponderantes nisso – como Michael Masi, na figura centralizada de diretor de prova e, portanto, aquele a bater o martelo, foi desrespeitoso e levou ao que, em geral todos aqui no Grande Prêmio, trataram como vergonha, vexame, farsa ou adjacentes.

Às 15h locais de Spa-Francorchamps, não foi dada a largada do GP da Bélgica. Já começa por aqui o primeiro ponto importante. Havia uma indicação de que os carros começariam atrás do safety-car e, se houvesse a condição propícia, seria dada bandeira verde – com a possibilidade de uma largada parada. Segundos antes de a pista ser liberada, a chuva apertou. Houve a interrupção em si.

Em nenhum momento, houve qualquer indicação em tela de que a corrida já estava valendo a partir dali. Começa aqui o desrespeito, que vai nortear a visão sobre tudo que aconteceu: nós todos, no fim das contas, somos consumidores de informação. Nós acompanhamos corrida pela TV, pelo streaming da própria F1, pelas redes sociais, por rádio, por fumaça e por respiro. Quanto mais claras as coisas, melhor. Temos exemplos evidentes em esportes como NBA e NFL, em que os árbitros anunciam claramente quais são as decisões tomadas, e, em menor escala, o VAR quando corretamente usado em ligas de futebol da Europa. Assim, acompanhar todo aquele desenrolar de fatos sem ter uma posição oficial por duas horas do que estava por vir é inadmissível para uma categoria que cresceu, sim, por sua mudança na forma de se comunicar.

As únicas informações que vinham eram pílulas sobre updates. “Próxima informação daqui 10 minutos”, e a próxima informação era uma “próxima informação daqui 5 minutos”, que vinha na sequência de outra sem nenhuma relevância. Pergunto: pra quê? Pra que estas informações completamente engana-trouxas vieram sendo que, no fim das contas, estava claro que não haveria corrida e que a decisão de Michael Masi era simplesmente colocar os carros na pista para fazer a corrida valer e constar metade dos pontos?

A F1 tem lá sua transmissão própria/Sky Sports. Por que, então, não foram lá na salinha do glorioso para perguntar a ele? Por que não puseram a arte do rádio na tela com uma conversa com o venerável perguntando: ô, cidadão, e aí, que você tá pensando sobre a corrida, a vida, o universo e tudo mais? Vamos esperar até quando? Quais os procedimentos? Tem chance de adiar para amanhã? Tem chance de cancelar e não valer nada? Você vai acompanhar na semana que vem a estreia lá do Domingão com o apresentador que faz assistencialismo barato?

Porque aí, quando se chega às 17h e aparece a mensagem de que foram completadas 2 horas de ‘corrida’ e que o cronômetro será paralisado para que se tenha pelo menos 1 hora de ‘corrida’, ninguém entende nada. Ué, como assim já tivemos 2 horas de corrida sendo que só às 15h25 locais os carros de fato saíram do grid para dar uma volta? Por que o cronômetro não foi paralisado antes?

E, então, se dá a ceninha teatral: 60 minutos na tela em regressiva, mensagem de que a corrida vai começar em 10 minutos, boxes liberados, o safety-car comanda a patuleia, dão duas voltas e retornam aos boxes. Aí Vettel e Mazepin pegam a bola para jogar, na Alpine voltam a embaralhar as cartas para retomar a biriba, os comissários jogam aquelas três bolas pratas na brita – falaram que é uma tal petanca, que ainda preciso descobrir do que se trata; pra mim, é uma bocha diferente –, e fim. Fim? Assim mesmo, na caruda?

O teatro é tamanho do tal Masi que nem as equipes foram comunicadas dele. Tanto é que a Aston Martin trocou a asa do carro de Stroll e a Red Bull trabalhou feito louca para arrumar o carro de Pérez. Porque ambas achavam que, sim, haveria uma corrida. E o bonito não falou nada.

Aliás, a permissão para que Pérez pudesse voltar é uma afronta ao regulamento esportivo que diz, claramente, que um carro que não vai ao grid por seus próprios meios não tem permissão para largar. A Red Bull consultou o consagrado, que não sabia a regra com a devida certeza, repassou o caso aos comissários, que, estranhamente, deram o aval.

Tudo isso, então, contribui para a patacoada que acompanhamos minuto a minuto. Muitos pilotos, como Hamilton, Alonso e Vettel, posicionaram-se contra a distribuição de pontos aos dez primeiros e àquela ‘farsa’. Lewis, por exemplo, falou em devolução do dinheiro e tudo mais. Clichês à parte, há algum fundamento – e Stefano Domenicali, presidente e diretor-executivo da F1, já se apressou em dizer que está pensando de fato em alguma recompensa.

Ross Brawn bradou contra o regulamento. E é ele, no fim das contas, que é falho. Como no ano da graça de 2021 não há no extenso regulamento esportivo da maior categoria do esporte a motor uma descrição de fatos que deve ser obedecida em caso de chuva numa corrida? Como é que ninguém assiste a Indy ou Nascar naquela pemba? Como é que ninguém ali entende sobre procedimentos de logística que possam permitir, por exemplo, uma corrida em uma segunda-feira? Neste caso específico, haveria condições de se mudar o protocolo para que acontecesse hoje, já que a Holanda, a próxima corrida no fim de semana, é do lado da Bélgica. Aí teve toda esta lambança do queridão lá da direção de prova, e deu no que deu.

O mundo da F1 não consegue ter o traquejo e a malemolência para resolver situações que, agora sim, parecem do passado. Ainda mais com uma questão que não é propriamente inédita. Porque, ao fim e ao cabo, o regulamento que é falho foi usado à risca por uma pessoa protocolar e insípida para tomar a decisão correta da pior maneira possível com a consequência mais falha: dar metade dos pontos.

O GP da Bélgica que não existiu não poderia dar pontos a ninguém, o que significa que não deveria premiar ninguém e não ter feito ninguém subir no pódio. Um jogo no Alfredo Jaconi entre Juventude e São Paulo que é paralisado pela neblina em Caxias do Sul não é dado como encerrado com empate em 0 a 0 e 1 ponto para cada lado. Não se pode haver uma farsa como aquela de dar 3 mentirosas voltas, o resultado final só apontar 1, e Verstappen sair com 12,5, Russell levar 9, Hamilton, 7,5, e por aí vai, como se houvesse de fato uma corrida.

Bom que todos estão salvos e não aconteceu nada? Evidente. Ao menos isso. Mas a falta de consideração está em todos estes fatos. Hão de dizer que não queriam ser desrespeitosos, e tal. Pode até ser; muitas vezes a gente não quer ser desrespeitoso com ninguém, acaba sendo e só depois se percebe – ou fazem perceber, dada a grita. Mas foram. Foram como o cara que faz assistencialismo barato pela TV e, a bem da verdade, expõe e humilha as pessoas em troca de audiência e ego, mas não se toca disso. Ou não quer se tocar.

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