Blog do Victor Martins
Crônica

A República da Delação

SÃO PAULO | Nestes tempos neuróticos, a primeira coisa que a gente faz ao acordar é tirar o carregado celular da tomada para verificar o que está acontecendo no mundo via redes sociais. Mal dá tempo de tirar a remela, e uma enxurrada de notícias dos mais variados tipos estralam os olhos. É preciso estômago […]

boca-fechada

SÃO PAULO | Nestes tempos neuróticos, a primeira coisa que a gente faz ao acordar é tirar o carregado celular da tomada para verificar o que está acontecendo no mundo via redes sociais. Mal dá tempo de tirar a remela, e uma enxurrada de notícias dos mais variados tipos estralam os olhos. É preciso estômago forte e uma boa dose de paciência – para fazer, principalmente, uso dos itens de desativação de notificações e silenciamento de perfis – para aguentar os últimos tempos.

Mas a semana começou com um episódio emblemático que foge ao beligerante embate político e que, no fim, converge a ele. O repórter Felippe Facincani, da Rádio Bandeirantes, surge em áudio esculachando o Palmeiras e seu mais recente vexame, a derrota por goleada para o primeiro-comandado Água Santa. O jornalista usa de hipérboles e xingamentos jocosos durante os pouco mais de 4 minutos. Felippe não estava no exercício de sua função e soltou isso em um grupo de WhatsApp. Alguém do grupo vazou.

A primeira coisa que me saltou aos olhos remelentos e estralados é que tipo de filho da puta se preza a espalhar um áudio de caráter particular, feito para um seleto grupo de, supostamente, amigos e/ou colegas de trabalho. 99% das pessoas normais e que fazem uso de aplicativos como o WhatsApp, segundo uma pesquisa que eu mesmo acabei de bolar e que garanto o resultado, estão inseridas em patotas como estas, de trabalho, de amizade, familiar ou com um gosto específico, e lidam com este tipo de brincadeira todos os dias. Não creio que, por exemplo, não gostar de algo divulgado entre quatro cantos de smartphone dê o direito de alguém compartilhar o que ali está, ainda que não tenha tido a intenção de foder com a vida do autor, para que este seja execrado em praça virtual e corra riscos no exercício de sua profissão ou até mesmo físicos. O país cairia, de fato, se todas as DMs, mensagens particulares ou estes grupos tivessem a caixa preta aberta. Não sobraria um para contar histórias, fazer piadas preconceituosas ou mandar nudes.

No caso específico, não importa se eu ou qualquer um de nós que não estava participando daquela comunidade tenha gostado ou se sentido ofendido com a fala de Facincani – se vale o registro, eu, palmeirense e galhofeiro que sou, achei genial e engraçado pra caralho. O que me preocupa é falta de privacidade que temos vivido e que nos faz desconfiar e ter um pé atrás até mesmo quando a gente acha que está com pessoas de nossa confiança. Não deixa de ser uma delação pela qual Facincani passou: seu ‘crime’ foi entregue, como se ele não pudesse tirar o colete de repórter e afastar o microfone para ser simplesmente um ser humano como qualquer um de nós, exagerados, aficionados, coléricos, debochados. Humanos.

Facincani teve de excluir sua conta no Twitter, passar cadeado no Instagram e olhar para todos os lados e verificar se não tinha um Japonês da Federal esfregando as mãos para levá-lo à sala de depoimento; recluso, o repórter já está, em seus pensamentos e em como sua vida acaba sendo devassada sem ser culpado. Não tenho qualquer informação a respeito de sua posição na empresa, mas sei bem de um caso em que foram pedir cabeças no mesmo grupo de comunicação porque a opinião do jornalista ia de encontro com os interesses indycados por acordos.

Nestes tempos mais que neuróticos, em que uma cor representa inimizade e os sujos querem tirar os mal-lavados, o Brasil virou uma República da Delação. Outro dia, soube que há comunidades no Facebook em que pais incentivam seus filhos a identificarem nas escolas professores que tenham tendência esquerdista para que sejam devidamente demitidos do cargo; dois amigos tiveram de explicar, em entrevistas de emprego diferentes, se eram a favor do impeachment. Isso remete aos primórdios da raça, que transforma a vizinha que fica debruçada à janela ou pega um copo de vidro para ouvir melhor pela parede como investigadora e fiscal da vida alheia ou, em época pós-moderna, o torcedor visceral que caça e vasculha mensagens antigas de seus alvos em 140 caracteres. O delator, travestido de vizinha, torcedor ou pai de aluno inocente, acha que está prestando um papel imprescindível à sociedade como se ele não tivesse deslizado jamais, com ou sem objetivo de prejudicar algo ou alguém.

Já sei de um punhado de gente que vai passar a ficar quieta nestes grupos temendo ser o próximo Felippe da lista, o que nos transforma em personagens amedrontados de nós mesmos. Porque todas as nossas ações estão sendo vigiadas 24 horas por dia como em um Big Brother, e se a edição ou a câmera captarem qualquer movimento em falso, o caminho é o voto da imensa casa, o dedo apontado dos anônimos com toga. Facincani, como outros colegas, está no paredão sem ter pensado em entrar neste programa da vida irreal. A justiça torta vai avaliar seu castigo enquanto quem lhe entregou se refestela por ser um vilão mau caráter.

Os vilões maus caráteres brotaram aos montes nestes tempos muito mais que neuróticos numa república de caguetas, dedos-duros e X-9’s. Com muito orgulho e com muito amor.