Blog do Victor Martins
Crônica

O direito de se espantar

SÃO PAULO | Deveria estar feliz porque a F1 acabou – que campeonato horrível – , ansioso pela final em que o Palmeiras pode ser campeão – apesar de não ter time para isso – e exultante por o Grande Prêmio ter levado o Troféu Aceesp pela reportagem de Renan do Couto batendo o ‘JN’. Tudo […]

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SÃO PAULO | Deveria estar feliz porque a F1 acabou – que campeonato horrível – , ansioso pela final em que o Palmeiras pode ser campeão – apesar de não ter time para isso – e exultante por o Grande Prêmio ter levado o Troféu Aceesp pela reportagem de Renan do Couto batendo o ‘JN’. Tudo isso passa diante do caos que se vive em SP em que estudantes só querem um lugar para estudar e são alvo da violência descontrolada do governo e sua PM desde a noite de ontem.

Um amigo é professor e se vira mais que nos 30 para dividir seus esforços em duas frentes: a da manhã é mais puxada e o leva para o extremo da cidade numa escola municipal; a da noite é mais próxima de sua casa e se destina a um conhecido e renomado colégio católico. Não tem muito tempo, ele conseguiu uma excursão vespertina para que os alunos de um determinado período da primeira fossem visitar a segunda. Merece destaque seu esforço: ele que foi atrás disso, em fevereiro, e depois de oito meses, sem ter seu pedido solicitado à prefeitura de ter um mísero ônibus aceito, pagou do próprio bolso o aluguel do transporte e honrou sua função de educador.

A visita teve seus pontos traumáticos, mas foi rica, disse ele. O momento-chave foi quando o ônibus passou a Paulista. Aquela juventude que não tinha mais que 16 ou 17 anos prostrou-se nas janelas para admirar aquela avenida. A esmagadora maioria não tinha jamais visitado o principal ponto da cidade onde moravam. Os olhos abertos e os queixos caídos eram espelho de uma realidade irreal. Assim continuaram quando chegaram ao destino e viram que o espaço da outra escola era quase um castelo estudantil com tudo à disposição dos outros que tiveram melhor sorte.

Pedi ao amigo que descrevesse. “Tudo era ‘uau’. Um grupo de meninos quis meio que se enturmar com as meninas do outro colégio, chamando-as de ‘princesas’. Óbvio que receberam um olhar de desprezo. Já as meninas trocaram de roupa, tiraram o uniforme da prefeitura e ficavam no celular fingindo que eram riquinhas. Muitos ficavam perguntando o valor da mensalidade. Eles enlouqueceram quando viram quadra.”

Prazer, molecada, esta é a São Paulo que lhes traz o encanto e o espanto como quem de nós vai pela primeira vez a Nova York ou Paris.

Neste colégio particular, contou este amigo, há uma leva de professores que não lhe são muito afeitos justamente porque sabem de seu engajamento em manifestações – e tais colegas docentes entendem que greve, por exemplo, é “coisa de vagabundo”. Então torna-se risível concluir que é bastante complicado para certa parcela da população, branca, abastada e supostamente letrada, entender o que pensa e como age quem está do outro lado da linha do Equador social: que os negros, pobres e dificilmente alfabetizados com correção veem o futebol como única plataforma de inclusão ou ascensão.

Por outro lado, a polícia militar usa dois pesos ao cruzar essa linha, ainda que aperte o spray, desça o sarrafo e acione o gatilho em ambas como recurso único de um aprendizado típico de escola pública. Se é óbvio que sua ação é desproporcional e descabida quando se trata de quem tem pouco para dar, os registros de seu trabalho do lado de cá precisam ser dados. Tem um caso de um cara que estava em casa em plena terça-feira de manhã, preparando-se para sair rumo ao trabalho, e viu certos vultos passando pela janela de vidro temperado no quintal da frente. Sorrateiramente, destravou o cadeado e abriu, espantando-se com os três ou quatro policiais que ali estavam de arma empunhada. Enquanto notava que a vizinhança acompanhava o caso, quis saber o que estava acontecendo. Sem resposta, o cara negou a entrada dos militares, que só diante de insistência revelaram: havia uma denúncia de roubo seguido de invasão. No fim das contas, a invasão foi deles, que simplesmente erraram a casa desse cara, que como diria a música, sou eu.

De forma que grande parte dos que estão nesta linha, pois, não precisou batalhar para literalmente poder estudar, tampouco passou por histórias em que se sentiu mais ameaçada com a presença da polícia do que sem.

Já tem um mês que a gestão (?) de Geraldo Alckmin e sua política de completa erradicação da educação determinou o fechamento de escolas em todo estado sob o eufemismo de uma reorganização que não existe ou foi discutida com este povo. Diferente da letargia de quem não vê água em sua panela batida ou acha normal superfaturamento de metrô em linhas paradas, um movimento de indignação se iniciou para que estas escolas fossem ocupadas. A reação em cadeia viu um movimento que este amigo professor nunca esperava: a juventude de lá da linha não lhe parecia engajada ou interessada o suficiente em defender seu espaço.

Ainda que não fosse sua função, os alunos e os colaboradores que arrebataram passaram a tratar a escola como casa. Aulas passaram a ser ministradas e, dizem, foram muito mais eficientes do que aquelas aplicadas pelos livros. O governo teve tempo de repensar sua decisão e até mesmo de chamar para o diálogo. Mas preferiu passar a lição de sempre, depois da insólita situação de pedir aos que queriam estudar que deixassem os colégios: mandar suas tropas às ruas em uma aberta estratégia de guerra de um quase-estado de exceção. Jovens sentiram o poder da pimenta, o susto da bala e pressão das algemas, também aplicadas a quem estivesse nos mais diversos pontos das trincheiras para cobrir a beligerância da PM.

A grande mídia usa dos mesmos recursos para desfocar a história tratando-a ingenuamente como confusão ou confronto. A grande mídia joga a história como nota de rodapé, não faz cobertura em tempo real e nem mesmo se preocupa em fazer pautas que seriam, digamos, curiosas para um caso como este: a dos filhos de PMs que estudam em escolas do estado. A grande mídia é o escudo da ação do governo. Grande mídia, essa.

E quando a gente junta tudo, fato é que este último mês se inicia à altura da desesperança que tomou conta do ano todo, com uma sociedade doente que nem o melhor dos planos de saúde é capaz de curar – e isso é notório quando se percebe que há um punhado de gente, a que não entende picas de nada além do seu mundinho caviar, bate palma e posa para foto com uma corporação com resquícios de ditadura que acha que bater em estudantes e manifestantes é lição bem dada a vagabundos. É muito além de uma divisão partidária e de defesa de posição política que é falha em todos os lados: é uma questão de princípio, de humanização, de civilidade e de caráter que se coloca em xeque. O governo não aprendeu porra nenhuma com as manifestações de dois anos atrás. Muita gente aprendeu tudo ao contrário. E quem quer aprender sente a dor física e moral.

Nós começamos todos os dias em desvantagem. Ver as gerações mais novas que simplesmente querem o direito de estudar sendo reprimidas com tamanha violência é o tal do 7 a 1 que virou símbolo extremo da nossa derrota. É o 7 a 1 também para a molecada que foi à luta e talvez enxergasse um futuro além do futebol que as tiraria desta vida. A molecada do outro lado da linha não tem direito de se encantar. Só de se espantar. Como todos nós que têm o mínimo de consciência do que estão fazendo com nossos moleques.