Blog do Victor Martins
Crônica

40 mil vezes 20 centavos

SÃO PAULO | Afastada dos protestos dos pseudojovens que, em nome de um transporte público 20 centavos de dilma mais baixo, acabam com ele, aquela senhora de baixa estatura e óculos que encostava na bochecha subia a longa rua sob o sol que lhe ajudava a trazer o brilho encrustado pelo suor. Parou quando o […]

SÃO PAULO | Afastada dos protestos dos pseudojovens que, em nome de um transporte público 20 centavos de dilma mais baixo, acabam com ele, aquela senhora de baixa estatura e óculos que encostava na bochecha subia a longa rua sob o sol que lhe ajudava a trazer o brilho encrustado pelo suor. Parou quando o viu, e a calma ao falar também denotava sua procedência de vida severina. Colocou a mão direita na cintura enquanto segurava com a outra a bolsinha que certamente carregava alguns poucos 20 centavos e sua identidade. “Moço, você sabe onde fica a Cantareira?”

O moço ali apontou para a curva sinuosa que se seguia e tratou de explicar que o caminho terminava em um sinal e, pronto, aquela senhora já podia chegar à avenida desejada. A senhora ajustou os óculos e não agradeceu, mas preferiu elucidar a curiosidade, se o moço a tivesse. “Eu estou procurando um posto”, e deu detalhes do posto muito evidentes de quem já esteve naquele posto, mas que o passar do tempo e sua vida trataram de borrar. Voltou-se à ponta da ladeira para continuar a conversa e contar que visitara dois postos e perguntara ao dono, ao frentista e possivelmente aos clientes em sua busca, mas diante do que recebia, não, não era nenhum daqueles. São Paulo é uma cidade de manifestações, vândalos e muitos postos.

A senhora também tinha um turbante branco bordado bem ajustado, tal como a visível dentadura que mostrava ao silabar a necessidade de chegar ao posto. “É que meu filho trabalhava lá e foi demitido, e o dono ficou devendo um dinheiro para ele porque tinha algumas dívidas. Daí eu soube que o dono vendeu o posto e estou indo ver se consigo o dinheiro do meu filho de volta”, ela disse, fazendo com que o moço concluísse se tratar de uma causa justa e o provável posto do posto. Questionou a senhora de quando que o rebento havia trabalhado, confirmou ao ouvir que “já tem uns três anos”, tornando a indicar a rota e, então, virar à esquerda para ver o que sobrou do posto.

As sobras do posto são algumas pilastras e, de vez em quando, uma churrasqueira que é usada nos finais de semana para os notívagos que voltam da balada e não têm do que se fartar. O local foi vendido a uma construtora para dar vez a mais um destes blocos de andares de comércio ou residenciais de boa localização, e enquanto o moço assim pensava, a senhora balbuciava duas ou três frases repetidas até que o preço da dívida saltou aos ouvidos: “São 8 mil reais”.

Rápido em matemática, o moço logo comparou que o valor são 40 mil vezes maior que o aumento da tarifa do transporte metropolitano, pela qual a mãe, o filho e a família deveriam lutar. Quase quis, aliás, ir lutar com ela, sem nenhum interesse, mas porque aquela senhora notoriamente precisava daquela grana e pela simplicidade. A simplicidade que não se encontra nas vestes, na bolsinha, no sotaque, no turbante e na idade, mas na esperança escondida nos olhos de quem espera encontrar alguém num lugar onde não há mais ninguém, para pedir o que era de seu direito do seu filho e, portanto, seu.

Ela sorriu e agradeceu e foi, e o moço tomou seu rumo reflexivo e sabedor de que aquela senhora tinha motivos de sobra para fazer a maior manifestação do mundo, ir à Paulista com seu filho e demais parentes com placas com palavras de ordem e reivindicação, com apito na boca e cara pintada, procurar a cabeça do ex-dono de posto caloteiro, arrebatar mais gentes para que aderissem à sua causa e protestar dentro dos seus limites. O posto está lá, destruído, e não foi a senhora a culpada, e em nenhum momento ela deu motivo para que seu protesto virasse protesto de ninguém.

Contida no seu silêncio, sem carro do ano e smartphone para postar a foto do caminho de sua desgraça, a senhora terminou o dia na mesma São Paulo sem reaver os tantos centavos, e assim vai terminar todos os seus outros dias, provavelmente na batalha e eternamente muito maior e mais digna que todos os vândalos juntos.

Adendo: quinta-feira, tarde/noite. Diante do que se tornou a manifestação, muitíssimo além dos centavos a mais, e com essa (des)organização que é a Polícia Militar, uma excrescência que traz seus pútridos resquícios da ditadura, não tem como não apoiar aqueles muitos que estavam lá para reivindicar na paz, como trouxeram os relatos de colegas e anônimos que os acompanharam do Viaduto do Chá à Consolação. Ainda, é a evidência extrema de que o governador e o prefeito são dois omissos, cretinos que não merecem crédito algum da população. O estado está falido, e diante das cenas de guerra que pararam a principal avenida da cidade, nós estamos perdidos.

Não sou partidário de vandalismo, ainda mais com quem não tem que pagar o pato. Mas com a rebeldia do povo diante do modelo de governo, principalmente com esta corporação que deveria dar segurança, mas traz medo, faço aqui um mea-culpa de apoio.

Adendo 2: Elio Gaspari fala de quem é a culpa.