Blog do Victor Martins
F1

Negaraku, 3

SÃO PAULO | A corrida em si pouco importa diante dos dois casos que evidenciam essa pobreza de espírito (não só esportivo) que as equipes de F1 demonstram, sobretudo num início de temporada. Não é questão de zelo ou justiça que se apregoa: virou regra do jogo um companheiro de equipe não atacar o outro […]

SÃO PAULO | A corrida em si pouco importa diante dos dois casos que evidenciam essa pobreza de espírito (não só esportivo) que as equipes de F1 demonstram, sobretudo num início de temporada. Não é questão de zelo ou justiça que se apregoa: virou regra do jogo um companheiro de equipe não atacar o outro no trecho final de uma corrida, herança maldita e nefasta dos tempos de Ferrari de Ross Brawn e Jean Todt. Este legado desprezível se aplica em todas as castas da categoria. A Force India, equipe que tenta ser grande, impediu que Di Resta atacasse Sutil nas voltas finais em Melbourne. Paul ficou putito, falou que foi roubado até. Palavras fortes que talvez tenham ficado ao vento justamente porque 1) estava no começo do ano, 2) Sutil fez uma corrida muito melhor e, se fosse por meritocracia, deveria terminar à frente e 3) era Di Resta.

Mas como a coisa agora aconteceu com Red Bull e Mercedes, a equipe chefiada por Brawn, o negócio é muito mais embaixo, também eticamente falando.

Primeiro que é necessário definir que, seja como for, a equipe analisa como convier o que é melhor para si. Uma companhia decide as estratégias de seus lucros no mercado e faz com que seus funcionários se adaptem a ela. Geralmente, se há uma discordância em relação a isso ou se o trabalho não é executado a contento, eis que surge a demissão. É assim que acontece em nossas vidas. Mas é o esporte, e nas leis coubertinianas, a competição deveria estar acima. Tem-se, então, aquela velha balança que surge para ponderar os lados.

A balança da F1 pende para a supracitada coxinhice de não ataque doméstico. As equipes não permitem que seus pilotos corram riscos desnecessários e pedem que os carros sejam trazidos para casa naquelas posições. É um cessar-fogo a contragosto. Como fez a Force India na semana passada, a Red Bull ordenou que Vettel não atacasse Webber – determinando que ambos aliviassem os motores – e a Mercedes determinou que Rosberg sossegasse o facho e ficasse atrás de Hamilton, mesmo com a queixa desvelada e justa de Nico de que era muito mais rápido que o companheiro.

Vettel transgrediu as regras. Rosberg acatou.

As situações são bem diferentes. Webber andou tão rápido quanto Vettel durante a corrida toda e só baixou o ritmo porque veio uma ordem do rádio pedindo para tal. Havia ali uma combinação prévia entre as partes, certa e sabida pelos dois que deveriam saber, de que daquela forma deveriam terminar a corrida. Sebastian desobedeceu. Aos que já o comparam com Senna, que ele teria feito o mesmo, Schumacher, essa coisa toda, sim, é até válido comparar. Porque Vettel foi tão sujo e desonesto e sacana quanto todos estes que se tornaram ícones do esporte. E todo mundo teria de se pôr na situação, ou mesmo no seu trampo, se gostaria de ser passado para trás diante de uma palavra honrada de um colega de trabalho ou de sua empresa. Certamente haverão de achar que quem lhe passou a perna é um filho da puta inescrupuloso.

Sinteticamente, a Red Bull não precisava pedir aquilo – como nenhuma outra equipe precisava. E Vettel nunca deveria se permitir fazer aquilo, porque não precisa daquilo. Vettel conquistou três títulos brilhantemente sem puxar o tapete de ninguém. De qualquer forma, sentiu que errou de pronto. Sequer soltou o ‘u-hu’ característico. Desceu do carro e comemorou, por assim dizer, contidamente. Não esboçou sorriso de imediato. E baixou a cabeça diante do olhar furioso e viral de Webber tão logo os dois se encontraram na antessala do pódio. Arrependeu-se, humano que é – quem nunca fez cagada homérica e federal na vida? –, e até mesmo seus maiores defensores na Red Bull, tipo Helmut Marko, demonstraram estranheza e repulsa à atitude. Uma não vitória, para resumir.

No caso da Mercedes, Rosberg vinha levemente mais rápido que Hamilton durante a corrida e estava bem melhor na parte final. Claramente tinha carro para passar e, em um circuito tão largo como Sepang, o risco de acontecer algo entre os dois pilotos, que são amigos, era muito menor que a briga entre os caras da Red Bull. Nico ferveu quando ouviu do chefe inventor da moda errada que deveria ficar ali e que Lewis tinha ritmo para andar mais rápido. Mentira. O próprio inglês admitiu depois que era Rosberg quem deveria ter sido terceiro na corrida. O alemão fez ameaças, “guarda essa aí, trouxa”, disse algo nessa linha, talvez sem o trouxa, ou ele disse o trouxa sem ter apertado o botão, mas é realmente um trouxa, esse Brawn. Não que se devesse esperar que Hamilton fizesse o papel do bom samaritano e abrir passagem, mas ali, mais do que nunca, bicho, o protetorado a Hamilton era descabido demais. Se se convencionou a determinar que há piloto #1 e #2 nas equipes, aquela em que menos se aplica a situação é justamente na Mercedes, porque Rosberg não fica tão atrás de Hamilton.

E olha que isso não aconteceu com a Ferrari. Porque se tivesse ocorrido, putaquemepariu, a grita que se estaria fazendo agora chegaria a Brasília com uma série de liminares para que Dilma interviesse na F1. Todos os que estão achando lindo e maravilhoso o que Vettel fez certamente haveriam de ficar putitos se fosse Stefano Domenicali pedindo para que Massa deixasse Alonso passar porque Fernando está mais rápido que ele, ou ainda pedindo que Felipe segurasse a peruca e visse o espanhol deitar e rolar. “Ah, mas essa Ferrari é ridícula, que absurdo, como fazer isso com Massa, é ridícula”, mas como foi com Vettel, e ninguém deve abrir mão das vitórias, pode. Além de caráter, gente, critério é bom.

Entendam, negada: é claro que o esporte determina que o melhor vença dentro das regras e, de preferência, sem interferências externas. Mas tem coisas que ficam acima do esporte. Caráter. Combinou algo com alguém, cumpra, honre, faça valer sua palavra. É questão de princípio e de confiança. Vale não só para o trabalho, para aquela coisa toda de amizade, de se contar nos dedos as pessoas que se têm do lado.

Não que quisesse ou esperasse de fato, mas Webber nunca mais vai ter Vettel ao lado. Que, se devidamente arrependido, há de ter aprendido que nunca mais deve repetir isso. São lições que ele se dá e que passa ao mundo, questões simples que às vezes passam ao largo de todos. Hoje, ao ganhar a qualquer custo, Vettel entrou devidamente para o rol dos grandes campeões – aqueles que têm máculas na carreira pela falta de honestidade. Vai dele carregar, não para a F1, mas para a vida, mostrar que o que fez em Sepang foi um lapso e uma exceção. Esta vitória terá um gosto muito maior se Vettel souber ganhar.