Blog do Victor Martins
Futebol

Ser e valer

SÃO PAULO | García Morente pode ser um nome não muito afeito aos nossos olhos ou ouvidos, já que não foi artilheiro ou craque do Campeonato Espanhol pelo Barcelona ou Real Madrid nem piloto ou investidor da HRT ou da Campos na F1. Manuel era filósofo, da escola kantiana, e seus estudos concentraram-se principalmente na […]

SÃO PAULO | García Morente pode ser um nome não muito afeito aos nossos olhos ou ouvidos, já que não foi artilheiro ou craque do Campeonato Espanhol pelo Barcelona ou Real Madrid nem piloto ou investidor da HRT ou da Campos na F1. Manuel era filósofo, da escola kantiana, e seus estudos concentraram-se principalmente na axiologia, a área que se aprofunda sobre os valores humanos. Manuca, lá pelo começo do século passado, começou a formar suas próprias teses e chegou a uma conclusão simples, meio besta e óbvia olhando de relance, de que “os valores não são, mas valem” e que “uma coisa é valor e outra coisa é ser”.

A explicação de García Morente a tal tese é que o fato de atribuirmos uma opinião ou julgamento a algo que existe não significa que estamos fazendo menção à sua existência. Se alguma coisa que é não nos deixa indiferente, possui um valor, e isso nos permite os vários juízos que aplicamos – daí as concordâncias ou discordâncias que temos a respeito de tudo. Estes valores herdados ou aprendidos envolvem moral e conduzem nosso comportamento em uma sociedade.

Um filósofo mais famoso, Levi-Strauss, que muitos usam como calças, cunhou que a moralidade tinha início na proibição do incesto. Numa linguagem mais coloquial, o francês via que o homem era diferente dos outros animais a partir do momento que ninguém comesse ninguém da sua família. Hoje, nossos conceitos talvez estejam muito mais evidentes neste sentido se a questão envolve menores de idade e a pedofilia – porque, há de pensar o mais danado, sempre há uma prima de segundo ou terceiro grau mais safada dando sopa, e a carne é fraca. OK, que seja. São leis de conduta que foram se aperfeiçoando com o tempo para que nós, enquanto sociedade minimamente civilizada, pudéssemos nos adaptar e nos encaixar a estes padrões.

Os padrões de hoje são evidentemente diferentes dos tempos de Levi-Strauss ou de García Morente. Hoje, somos muito mais permissivos e liberais, corpo, amor, erotismo, sexualidade e existência, e as discussões que surgem sobre o que é aceito ou não decorrem do acúmulo destes valores que nos foram imputados. Mas há alguns fatos mínimos neste conjunto de maneiras de comportamentos que transcendem os tempos. Coisas que a filosofia simplesmente apontaria como bom senso.

O futebol não é o melhor dos mundos para se falar em moral, por tudo que dele sabemos – a começar pelas entidades que o regem internacionalmente e nacionalmente, pelas manipulações de resultados, pelos casos de doping, e, em menor esfera, pelos pequenos atos que os compõem; até um minuto de silêncio é uma questão diferenciada nas várias sociedades, respeitoso lá, indiferente aqui. Mas convive-se com um esporte que é paixão mundial, e ainda que as mães dos juízes e as torcidas adversárias sejam ofendidas em todas as suas gerações, a partir do momento em que a integridade física de todos é mantida, os bens superam os males.

Não foi o que aconteceu naquela quarta-feira em que Kevin morreu. Quando um moleque apaixonado por um esporte perde a vida bestamente porque um idiota qualquer, ‘de menor’ ou devidamente barbado, apontou um sinalizador em sua direção, é porque precisamos imediatamente rever nossos valores. Novamente, cai-se sobre a organização que comanda o futebol por estas bandas, e de novo a conversa sobre (i)moralidade vem à tona por ser a Conmebol. Que, vá lá, tomou uma atitude contra o Corinthians, banindo sua torcida da fase inicial da Libertadores. Mas já que é quem supostamente manda, o juízo obriga a obediência.

Há, sim, um valor e uma simbologia sobre este ato da Conmebol. Uma metáfora que se embute: o respeito ao luto pela morte de uma vítima de 14 anos, que é o cerne da questão. E em qualquer sociedade deste mundo, qualquer que seja o credo ou postura, a moral simplesmente apontaria que a punição simplesmente fosse acatada em nome de Kevin. Assim, o Corinthians evidentemente foi imoral ao tentar demover a pena, e menos mal que não insistiu quando foi mantida – naquelas, passando um pano. A grandiosa parte de seus torcedores, todos aqueles que compraram ingresso, entenderam de alguma forma que não deveriam entrar ou forçar entrada no Pacaembu ontem contra o Millonarios. Menos seis.

Seis engravatados entendedores de outros tipos de leis e valores se valeram de sua aflorada coxinhice, neologismo que define muito do que é essa sociedade de fachada, para chegar a uma vara cível e conseguir a glória alcançada em formato de liminar. Enquanto a imprensa ainda encontrava resistência para passar os portões do estádio, os imbecis e bocós – aprendi alguns valores levemente críticos, não exatamente esses – que poderiam formar um nome de novela apareciam para as câmeras e microfones falando bonito – um nem tanto; era um mano travestido de terno – e batendo no peito em nome de suas vãs existências. Mas até o time que tanto amam, possivelmente constrangido com tal ato, suplicou que voltassem às suas casas e fossem condescendentes e minimamente humanos. Dois atenderam, e os outros quatro foram às numeradas para consumar sua cretinice.

Estes quatro fingiram escolher ir ao Pacaembu sem na verdade terem escolhido. Usar o direito do consumidor em nome de suas belas liberdades de ir e vir foi um subterfúgio jurídico para apenas serem representantes aos olhos dos outros que lá queriam estar como amantes de um clube de futebol. Eu definiria de outra forma, mas um outro filósofo, Jean-Paul Sartre, muito mais embasado e possivelmente eufemístico, simplesmente classificaria a ação dentro do tema moral como má-fé. Os quatro ficaram lá, gritando aleatoriamente quando não estavam falando em seus celulares, postando fotos no Instagram e no Facebook ou retuitando elogios, pensando serem representantes máximos, quase deuses, de um banco de loucos e, na esfera terrena, cidadãos que berram e clamam e buscam por seus interesses neste país. Sendo que nós, com este mínimo de valores morais, cagamos para este tipo de gentes.

Coitados. Os quatro do Pacaembu, da mesma família e com sua má-fé, só mostraram que não são nem valem nada.