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A queda do deus

SÃO PAULO | Eu não vi nem vivi nenhum discurso sindicalista de Lula. Quando o mundo por aqui ainda ditado por generais e coronéis, sua voz rouca vinda da língua presa era o levante dos trabalhadores, primeiro aqui do estado e depois de um povo. O traquejo político de Luiz Inácio, ainda que não resultasse […]

SÃO PAULO | Eu não vi nem vivi nenhum discurso sindicalista de Lula. Quando o mundo por aqui ainda ditado por generais e coronéis, sua voz rouca vinda da língua presa era o levante dos trabalhadores, primeiro aqui do estado e depois de um povo. O traquejo político de Luiz Inácio, ainda que não resultasse de imediato vitória, era evidente e iminente na criação de um grupo partidário. Com o PT, fez-se líder natural, e suas bases esquerdistas e manifestantes eram o contraponto daquela escória de governo que o colocou na cadeia. Livre, trabalhou pelas eleições diretas e lutou ao seu modo com seus companheiros depois que SP não quis como governador. Oposição, foi brigar pela presidência do Brasil, e se era na conversa que ganhava adeptos, foi num debate manipulado que perdeu a eleição para Collor.

Nem daquele debate eu lembro direito, mas nunca me saiu da cabeça a campanha que artistas fizeram para que lá brilhasse uma estrela. Também tenho lá um recorte do passado de Lobão indo ao Faustão, quando Lobão e Faustão eram bons, e que o apoio do cantor significou em sua punição a qualquer programa da Globo, a autora principal da chegada do rapaz do saco-roxo ao controle do país. O povo queria Lula desde então, ainda mais quando se viu a cagada que foi pôr Collor. Uma manifestação popular se fez, e os caras-pintadas, oh!, viraram símbolo da queda de Fernando há 20 anos.

O PT era visto como a anarquia e aversão por gentes acostumadas à represália. Lula, então, era o chefe de sequestradores, a ralé e a besta quadrada. Assim rotulado, foi tentar as cabeças de novo em 1994, mas não teve como bater FHC e seu plano real que dava uma estabilidade econômica a estas mesmas gentes habituadas ao tempo de inflação deste Sarney que por aqui ainda faz hora extra. Em 1998 aconteceu o mesmo, mas Lula foi se fortalecendo. Lula cresceu muito mais que o PT, apesar de ser impossível dissociá-los. Quando a patuleia cansou de oito anos de pouco crescimento econômico e neoliberalismo, e já formava uma geração jovem que não tinha ideia do que foram aqueles tempos de repressão, tipo a minha, deu-lhe então a chance – até porque nenhuma nação no mundo mereceria José Serra como seu representante.

Lula não era rei, mas tinha lá seu lugar no trono. Foi capaz de mudar o país, de formar uma nova classe média, de manter a inflação a índices baixos, de renegociar dívidas e, principalmente, de fazer com que a imagem do Brasil fosse completamente diferente. Lula deu a esta terra um respeito nunca antes visto na história. Lula só não conseguiu agradar outros tantos mais porque a mídia ainda era colonizada pelos antigos. Vieram as denúncias, como para os outros eram abafadas. O PT teve lá suas maçãs pútridas.

Mas Lula, na tentativa de agradar alguns, desagradou. Dentre os seus erros, os mais estranhos estavam no tipo de alianças que começou a formar. Antes combatente, deu os braços a Sarney e Collor. Na prática, foi juntando qualquer um que não fosse tucano. Se foi caracterizado pela oposição, a situação era estranha. Mas como a popularidade só aumentava, Lula foi se mantendo intacto. Sua força foi tamanha em 2010 que transformou Dilma Rousseff, desconhecida do grande público, em sua sucessora – ainda bem. No fim das contas, a vitória de Dilma foi menor que a de Lula. Lula virou rei. Eu vi e muitos de nós vimos isso. Virou deus.

E ser deus talvez tenha sido o grande diabo na vida de Lula. A partir do momento em que ele viu a cria, parceira dos tempos de luta de 30 ou 35 anos atrás, discursando com a faixa no peito, Luiz Inácio achou que era Midas e faria de tudo tal como fora. Se a presidenta se consolidava, e ainda sem dar chance alguma aos erros ou parcerias nefastas, Lula precisava concentrar seus esforços em afastar o mal do estado que levou ao mundo e sua capital. E tal qual fez com Dilma, sem olhar para o todo, quis criar um candidato que extirpasse primeiro o prefeito que entrou por demérito de Marta Suplicy e seus chegados e acabou com a vida da cidade. Lula não se ligou que, como a burrada com Collor de 1992, o povo estava inclinado em dar de novo chance a Marta. Preferiu tocar em Fernando Haddad.

Ainda abraçado ao PMDB, Lula só esmoreceu por conta da saúde. Mas os tumores na região da garganta não o tiraram do combate. Convalescendo, viu o morto Serra e as denúncias da privataria entrarem na disputa. Viu também os incríveis 30% de intenção de voto que este ser carrega. Lula insistiu. Haddad tinha (tem?) uma combinação contra: o desconhecimento e os problemas que o Enem lhe colocou no colo. Marta, apesar de sua rejeição, era a pessoa naturalmente mais indicada. E preterida, naturalmente optou pela birra de não apoiar Lula e Haddad. Simples. Porque Marta sabe que venceria com um pé nas costas uma eleição que se desenha como a pior da história em termos de opções e poria o PT de volta à prefeitura. O sucesso de Lula subiu à cabeça. Lula preferiu ser mais que o PT.

Diante do cenário em que está atrás de um ex-repórter de programa policial, uma ex-VJ que abandonou todo o nexo possível e um ex-cantor/apresentador marcado por umas bifas, Lula praticamente sozinho iniciou as suas articulações para que tivesse mais tempo de propaganda, que é sua única opção prática para difundir Haddad e aumentar os iniciais 3% e atuais 8% das pesquisas. Eis então que aparece Paulo Maluf na vida de Lula. Que reaparece.

Maluf era tudo que Lula combateu na sua vida desde o fim dos anos 70. Foi Leonel Brizola, mentor de Lula, que cunhou a expressão “filhote da ditadura” para Salim, aquele que também tem em si o adesivo do “rouba, mas faz”, do “se o Pitta não for um bom prefeito, nunca mais votem em mim”, e das tantas denúncias de desvios milionários e contas em paraíso fiscal que a santa polícia desta pátria finge que avalia. Maluf é a água do óleo que sempre moveu Lula, aquele Lula. Símbolo de tudo isso aí, Maluf virou a bizarra moeda disputada entre Serra, com quem tanto se parece, e Lula.

É difícil imaginar, para o eleitor mais racional, que o eleitor de Maluf vote em Lula/Haddad. Ou que, justamente, ter Maluf, hoje absolutamente irrelevante no palco político paulista, fazendo campanha a favor de Haddad vai fazê-lo mais forte. O PT precisava justamente se limpar de todos estes horríveis elos para tirar quem não lhe parecia igual, por posturas políticas, e até havia ganhado o bom suporte da injustiçada Luiza Erundina e do PSB para evitar o vampirismo. Mas hoje, este Lula apertou as mãos de Maluf.

Este Lula, definitivamente, não é aquele Lula. Aquele Lula que eu não vi discursar para as massas, aquele Lula que brigou pela democracia, aquele Lula que tentou mudar o país contra um playboyzinho e contra um sociólogo de cadeira de Sorbonne, aquele Lula que subiu a rampa e que me fez sentir orgulho porque aquele presidente era o meu presidente, o presidente dos meus ralos e parcos ideais sociais, aquele Lula que pôs essa Dilma que igualmente me deixa tranquilo de um trabalho honesto e rígido.

Lula tocou em Maluf em troca de tempo na TV e no rádio. Não é à toa que Marta não se mistura. Muito menos que Erundina queira sair já desta aliança — aliás, que o PSB seja esperto o suficiente para pô-la como candidata; só assim para que meu voto não seja anulado ou justificado. Elas, sim, têm respeito. Elas cultuam suas convicções. Não há produto no mundo que limpe isso nem motivo mais evidente que explique. O PT, anuente, caminha para a derrota das eleições mais ganhas dos últimos anos. E por 1 minuto e 35 segundos, Lula desconstruiu 30 e tantos anos de história.

Hoje, eu vi a queda de um dos meus deuses, e é uma pena que eu tenha vivido para ver isso.