Blog do Victor Martins
Futebol

A essência do ídolo

SÃO PAULO | Tenho lá minhas restrições para idolatrar alguém. Como tudo hoje tem seu significado deturpado, a visão de ídolo se confunde com a histeria que se faz por aquelas menininhas — e, por que não, menininhos e marmanjões — nos shows destes pseudocantores de refrões chicletes, na composição de um clichê bem colocado em […]

SÃO PAULO | Tenho lá minhas restrições para idolatrar alguém. Como tudo hoje tem seu significado deturpado, a visão de ídolo se confunde com a histeria que se faz por aquelas menininhas — e, por que não, menininhos e marmanjões — nos shows destes pseudocantores de refrões chicletes, na composição de um clichê bem colocado em redes sociais ou na vitória sobre um reality show. Basta que um rotule, pronto, a manada vai atrás. Ser ídolo ficou bem fácil e fútil.

Por isso o que eu acabo tendo é uma admiração profunda. Gosto demais de uma cantora canadense principalmente por sua capacidade de compor, o único piloto por quem torci muito na vida também é de lá, e tem um segundo, um italiano, que representa uma lição de vida das mais fantásticas destes tempos atuais antes e depois que perdeu as pernas, amigos com histórias de superação ou mesmo inteligência e argumentação visíveis e notáveis, e pouca coisa mais.

O que pode me fazer mudar de leve este conceito é a origem. Como o Capitão Nascimento faria para explicar o que significa estratégia, ídolo vem do grego εἴδωλον, como todos deveriam bem saber, e é um objeto de adoração que representa materialmente uma entidade espiritual ou divina, e frequentemente são associados a ele poderes sobrenaturais, ou a propriedade de permitir uma comunicação entre os mortais e o outro mundo. Grato que sou ao Wikipedia, é hora de analisar este Marcos.

Nome do meu pai. Nome do nosso goleiro. E foi um goleiro que me deu as maiores alegrias no futebol, para o time que eu escolhi torcer, não um Matador ou Animal. Eu não corri para uma sacada e gritei para a vizinhança inteira ouvir por causa de gols. Quando mais eu comemorei, Marcos era o centro das atenções. Foi Marcos que me fez entender bem o que é essa praga chamada futebol e me fez qualquer conexão com qualquer outra parte do universo.

Foram duas vezes no mesmo ano e, na intersecção, duas situações semelhantes. As defesas que tiraram os coirmãos da Libertadores em 1999 e 2000. O título da competição em casa no primeiro ano. São três imagens, três flashes, os pênaltis, os apitos, o olhar fixo na bola e a boca aberta. A boca que, quando aberta, é um espetáculo para os repórteres. Porque, face a mediocridade que se vê no esporte brasileiro, dele se extrai conteúdo. Marcos rende manchete no nosso linguajar, mas não porque quer ser polêmico. É porque é simplesmente sincero. É porque simplesmente é simples. Ser simples no mundo de hoje é artigo em raridade. Marcos é o Fusquinha no meio de tantas BMWs, com ou sem marcas de balas.

Pois há muito se especulava que aquele que batizaram como santo estava para se aposentar. Num cenário dominado por assessorias e declarações oficiais, optou pela discrição. Grande, fez o anúncio de sua retirada num dia em que muito se falava dos pseudocantores de refrões chicletes, fato que levou a várias composições de clichês bem colocados em redes sociais e quando foram revelados os novos candidatos a herois de uma nave-mãe pela 12ª vez. Não importa se ele é mais ou menos que o goleiro coirmão que faz gols — mas, putaquepariu, é o melhor goleiro do Brasil. Ele conseguiu ser praticamente unânime no gosto de um povo num microcosmo de tanta rivalidade. Marcos é Marcos.

Eu só o vi de perto uma única vez na vida. Eu fazia um cursinho concomitante ao último ano do colegial e era muito próximo ao hotel onde meu time costumava ficar concentrado. Passando a pé lá, vi os jogadores saindo em direção ao ônibus que levaria ao jogo. Lá estava ele, e eu, que não sou muito afeito a este tipo de ato, fui e pedi um autógrafo. Pois não só deu como começou a conversar. Na época eu nem tomava umas e outras, mas é o típico cara que vale a pena sentar à mesa do bar do Zé da esquina e ficar horas porque tem história e valor. Não pelo que ele fazia enquanto profissão, mas pelo que é como caráter. E isso é o que importa no fundo.

Claro que não lembro de absolutamente nada do que conversei, Marcos se foi para o ônibus, eu guardei o bloco de folha de fichário na mochila e segui meu rumo. Só me lembro que era 1998, um ano antes de ver que nascia meu ídolo em sua essência.