Blog do Victor Martins
Crônica

Ale Rocha

SÃO PAULO | Digamos que tudo tenha uma razão de ser por um ser divino. Desde pequeno, isso me foi posto como verdade à exaustão pelo Estado que não é laico, pela escola de madres passionistas e pelo colégio de frades beneditinos e indiretamente pela faculdade. Todos com nomes de santos, missas, palavras, salvação e […]

SÃO PAULO | Digamos que tudo tenha uma razão de ser por um ser divino. Desde pequeno, isso me foi posto como verdade à exaustão pelo Estado que não é laico, pela escola de madres passionistas e pelo colégio de frades beneditinos e indiretamente pela faculdade. Todos com nomes de santos, missas, palavras, salvação e rituais, e às 9h da manhã, todos de pé, a música vinha da sala de som e a oração que seguia, Senhor, eu vos agradeço por terdes morrido na cruz pelo meu amor, meu Senhor, misericórdia.

Meu Senhor, misericórdia.

A verdade virou dogma com a família voltada à continuidade da vida no pós-desencarnar, e a tia-avó mediúnica me fez crer com mais firmeza em algo. Deve ter algo, mesmo, e se tem, todo mundo apela ao seu deus de alguma forma, na agrura e na dor, a súplica, o perdão, meu Senhor, misericórdia.

Meu Senhor, misericórdia.

Senhor ou Deus, seja lá quem for, e se me realmente me ouve ou me lê, eu gostaria de questioná-lo por algum tempo. Porque vira e mexe eu sou obrigado a engolir que foi o Seu desejo de tirar alguém aqui de nós, que era a hora e que a missão havia sido cumprida. Não é meio que egoísmo de Sua parte achar que é o momento certo de tirar a vida de alguém? Qual o Seu conceito de tempo? E como saber qual missão cumprir ao Seu gosto, e como não cumprir da forma certa justamente para não satisfazer um gosto meramente pessoal?

Vamos ao fato. Ale Rocha. Um diagnóstico fatal, três anos e nada mais de vida por um problema pulmonar crítico. Se ele tinha uma missão, foi obrigado a mudá-la no meio do caminho. Ale Rocha soube se reinventar e partiu para sua nova fase. Abdicou de uma vida normal para viver, ao seu modo, uma vida normal. Para viver. Quando o Senhor, por meio de um cara de branco com um exame na mão, sentenciou uma previsão e um prazo de validade, tratou de dar seu conceito de tempo. Pois se não fosse Ale Rocha um afeito à vida, teria desistido antes. Teimoso, ouviu do Seu representante que um transplante seria a salvação única. Perdeu peso e passou fome. Entrou no eixo. Fez-se pronto. Durou mais que o dobro do tempo até que o pulmão que deveria salvá-lo chegasse. Qual o Seu conceito de tempo?, pergunto de novo.

Seja qual for, deu tempo para que Ale Rocha se tornasse um dos maiores críticos de TV do país. Que fosse conhecido por um monte de gente, que tomou conhecimento de seu apuro e da luta diária que era abrir os olhos. Deu tempo de sentar na poltrona, de vê-lo numa emissora e num portal de grande porte, deu tempo de ler seus textos, de muito mais concordar do que discordar, deu tempo de respeitá-lo, deu tempo para aplaudi-lo. Enquanto a vida esteve em suas mãos, Ale Rocha deu um baile no Senhor esse tempo todo, este tempo todo Seu e Seu conceito. Enquanto pôde, Ale Rocha preferiu seguir e lutou pra caralho, reconheça isso. O prêmio por essa luta só seria a antítese à estatística de que quem vai para a mesa de operação não sai bem dela.

E nestes dias todos em que vinham as notícias de que Ale Rocha estava bem, Você viu bem a felicidade geral e minha do quanto isso representava, para ele, claro, e para nós aqui. E do nada isso acabou, sem que ele pudesse agir. Meio que na trairagem. Sei que é egoísmo da minha parte, agora, mas como é que Você vai me explicar o que eu estava preparando para entregar a ele quando fosse vê-lo, enfim? E o beijo no rosto e o abraço de admiração? E o bar que eu ia marcar, como é que fica? E a festa e tudo mais? O que eu vou explicar para minha mãe quando, num momento de desespero dela, eu usei Ale Rocha como exemplo de vida? Você perguntou se era desejo dele? Sabia qual a próxima missão? Foi a desobediência dele ao seu tempo, é isso? Viu que Você conseguiu desagradar todo mundo?

Pela visão espírita que tenho da nossa mera existência, eu fico bastante tranquilo. Não há dor. Mas não tem misericórdia, Senhor. Não tenho nada para agradecer neste momento. Se sou julgado dia-a-dia, portanto me permita uma réplica: o Senhor foi bem burrinho nessa. Seria de bom grado admitir isso, erros acontecem, até com o Senhor, que dizem ser infalível. Só assim eu vou ficar menos indignado por aceitar que Você acabou assim com um de nossos heróis.

Ninguém mexe assim com nossos heróis.