Blog do Victor Martins
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Viado, filho da puta

SÃO PAULO | A única certeza que a vida tem é de um gosto mais do que duvidoso, e ninguém sabe com certeza absoluta quem foi que escreveu que deve ser assim. Há quem aceite com extrema naturalidade, justamente porque uma hora vai chegar, há quem tema e quem queira, há quem peça e que reze […]

SÃO PAULO | A única certeza que a vida tem é de um gosto mais do que duvidoso, e ninguém sabe com certeza absoluta quem foi que escreveu que deve ser assim.

Há quem aceite com extrema naturalidade, justamente porque uma hora vai chegar, há quem tema e quem queira, há quem peça e que reze para se esquivar. Há quem ache que vem quando um cara num lugar alto chama, fazendo o sinal com o indicador, e quem se opõe a isso pensa que tinha de acontecer e ponto.

No fundo, o problema está em como ela vem. No choque que causa.

Meu avô. Era mais do que meu segundo pai. Da notícia da pior doença até o fim, foram sete meses. Da terça em que eu o vi entrevado na cama do hospital, tentando balbuciar o que dava e o que sentia, uma palavra de três letras, ao sábado, era aquele o destino. Foi do choro da dor e da situação em si ao alívio de quem não tinha reversão. À distância pelo trabalho, não me foi tão duro. Eu me sinto confortável em não ter ido ao velório e ter evitado o ritual. Eu não queria ser mais um par de olhos a ver seu novo lar entre madeira e concreto.

Duro, mesmo, é quando a gente não espera. Duro é quando se bate à porta, assim, como intrusa. Maldita oficiala de justiça, sem justiça, com a intimação do despejo em punho e que só dá o direito de levar a roupa do corpo e nada mais. Em vez de esperar, ela busca. A única certeza é cruel e invencível.

Não que me consuma, mas tenho certo receio disso, de perder alguém hoje que vi ontem ou anteontem. Porque, além de tudo, a tendência é que a gente comece a buscar razões e detalhes para explicar, coisas que gostaria de ter dito ou expressado ou até mesmo evitado, a última palavra, a impressão que passou, a importância que sempre teve e nunca soube, a lição que deixa para uma eventual próxima oportunidade que ninguém quer ter.

Além de tudo, escolhi uma profissão de alto risco. Já foram dois finais vistos pessoalmente e alguns outros tantos longe. Clichê besta e afirmação desnecessária: não é fácil. Há um certo controle que ou se busca na marra ou se adquire com o tempo para evitar que o que se sente seja envolvido na condução jornalística.

Não havia a menor condição de isso acontecer hoje. Ainda mais com ele. E olha aqui eu buscando razões e detalhes para explicar a ironia: o cara que é escolhido como o protagonista, em vez de ganhar 5 milhões de dinheiros americanos, perde tudo.  E olha eu aqui lembrando o que disse a ele há cinco meses.

Foi lá em Indianápolis. Wheldon sabia o mínimo de português, o máximo das coisas erradas. Era a convivência com Kanaan e com Benito Santos — então colega de trabalho dele na Panther até o ano passado, hoje RP do próprio Tony. No ano passado, em meio a uma sessão de autógrafos, Benito me levou para conhecer Wheldon e logo depois soltou alguns tantos xingamentos em nossa língua para ver a reação do piloto. “Viado, filho da puta”, respondeu o inglês com o sotaque obviamente embutido, sorrindo e autografando um cartão para um gordo que ria e que talvez não reagisse de tal forma se soubesse o significado.

Em maio deste ano lá estava eu no templo para acompanhar a épica última vitória de Wheldon, na curva final e tal, todo mundo sabe como foi. O prédio da imprensa tem quatro andares, e Wheldon atraía a multidão de jornalistas para o primeiro, na sala de coletivas. Acompanhei algumas das perguntas, saí para fazer outras pautas e na volta, ao pegar o elevador, eis que Wheldon deixou rapidamente ali do lado e entrou junto. Eram umas 10 pessoas, não mais que isso, e eu fiquei ao fundo, bem atrás dele.

Podia ali fazer a pergunta que quisesse, e claro que não sairia nenhuma resposta exclusiva que fosse abalar as estruturas do jornalismo. Minha reação foi imediata e única, besta que sou, em tom que desse para ele ouvir: “Viado, filho da puta”. Wheldon conversava com um assessor à direita, parou e virou pra trás. Deu risada e repetiu, e eu dei a mão o cumprimentando: “Parabéns, viado, filho da puta”, e ele agradeceu e saiu no segundo para para uma sessão de fotos.

Hoje foi rápido. Ela veio letal num lugar conhecido pelas apostas, mas que ninguém ousaria apostar. Poderia ter atacado e levado outros 14, mas escolheu Wheldon. Não deu tempo de fazer a graduação na escala, se era grave, crítica ou irreversível. Mal se sabe ainda em que parte do corpo atingiu. Veio fatal como um todo, e ela acabou com a graça da festa. Acabou com a graça do mundo que o via.

De novo, é de se pensar: maldito seja quem a inventou e quem determinou ou quem a manipulou para que fosse dessa forma, sórdida e cretina. Se ainda pudesse dizer, Wheldon possivelmente definiria o dito cujo como um viado, filho da puta.

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