Blog do Victor Martins
Copa do Mundo

Porque Dinamarca

SÃO PAULO | A primeira pergunta que fazem quando sabem da minha torcida chega a ser meio bizarra e auto-explicativa ao ver minha fisionomia de cabelos e olhos castanhos escuros. Não há nenhuma ascendência mesmo nunca tendo procurado saber. Talvez alguma regressão revelasse que em alguma das vidas eu fui algum viking desbravador ou um defensor bravio do país […]

SÃO PAULO | A primeira pergunta que fazem quando sabem da minha torcida chega a ser meio bizarra e auto-explicativa ao ver minha fisionomia de cabelos e olhos castanhos escuros. Não há nenhuma ascendência mesmo nunca tendo procurado saber. Talvez alguma regressão revelasse que em alguma das vidas eu fui algum viking desbravador ou um defensor bravio do país nas duas grandes guerras. E ainda que houvesse, talvez seria um mero atestado formal.

A primeira grande lembrança data de 1992. Aos 11 anos, eu estava do outro lado da rua com os moleques da vizinhança, e eu já comemorava o surpreendente 2 a 0 da final daquela Eurocopa contra a Alemanha, a Eurocopa que não era para ter ido porque a vaga era da Iugoslávia que vivia a osmose interna e beligerante da separação das regiões do Leste Europeu com a queda do socialismo. A vaga para a Copa de 1994 não veio na última rodada, e sem internet ou qualquer coisa possível para acompanhar em tempo real, restou aguardar o relato da TV para saber se o esquema ridículo para não tomar gol da Espanha daria certo.

Tínhamos 19 pontos, se não me engano, e liderávamos a chave que tinha ainda as duas Irlandas. A do Norte estava logo atrás e também jogava pelo empate para ir aos EUA. Mas nós e os colegas setentrionais jogávamos fora de casa. O técnico da época, algum Jensen, Poulsen ou Olsen da vida, resolveu adotar o 9-1 naquele jogo em Sevilha, acho. Resumidamente, era ficar na defesa e dar bicanca quando a Fúria, então não tão furiosa, atacasse. Aos 39 do segundo tempo, veio o 1 a 0. A Irlanda ganhou dos arquirrivais, e a Copa já era. Havia um colega de escola, o Renato, cujo sobrenome era repetido, descendente de espanhóis, que passou a ser meu grande inimigo.

Menos mal que não participamos daquela sub-Copa. Aí vieram as Eliminatórias para a Euro 96. Lá estava a Espanha em nosso grupo. Tomamos 3 lá, empatamos em casa. De novo os ibéricos nos tiravam de uma competição. De lá pra cá, houve uns três ou quatro confrontos. Nunca vencemos. Pode ser que um ou outro que lá em cima viva lembre. Mas a Espanha não me desce. Nunca desceu.

Em 1998 caímos no grupo da França e passamos em segundo à fase de mata-mata. Nas oitavas, a Nigeria vinha toda posuda, o jogo seria uma dureza só. Mas uma maldita e obrigatória festa junina no último ano do colegial me afastou da TV. “Foi 4 a 1”, um amigo disse, e eu já lamentava a piaba quando me contou que seríamos nós os adversários do Brasil. Aquela passagem às quartas rendeu alguns galões de tinta vermelha e branca, e a bandeira e o símbolo da CBF local, certamente sem seus meandros escusos, foram desenhados cuidadosamente na parede do quarto.

Veio, então, a explosão no minuto 2 de jogo quando Jorgensen surpreendeu a defesa brasileira com uma falta batida rapidamente. O grito na sacada de casa encontrava eco na rua vazia e igualmente surpresa com aquele time que passava longe do favoritismo. A virada foi construída, mas Roberto Carlos, sem arrumar as meias e dando bicicleta no vácuo, tratou de deixar Brian Laudrup, irmão do grande Michael, livre para o empate, já no segundo tempo. Só que Schmeichel, certamente o melhor goleiro surgido desde a invenção britânica do esporte com pés, não chegou no chute milimétrico e rasteiro de Rivaldo no canto esquerdo. O 3 a 2 era o adeus, e a tristeza me fez sentir pelo resto da competição uma indiferença tamanha que eu dormi assistindo àquela famigerada final.

A desgraça pouca sempre nos foi bobagem, e em 2002 lá estávamos nós no grupo dos então campeões, também embalados pela conquista da Euro 2000. A Copa era na madrugada, o que só diminuiu poucos decibéis os gritos pela vitória sobre o Uruguai e, principalmente, sobre a França que eliminamos sem deixá-los marcar um gol sequer. O 2 a 0 comandado por Rommedahl e Tomasson nos dava o primeiro lugar e o confronto com a Inglaterra. A piaba de 3 a 0 num sábado, numa apresentação digna destes primeiros jogos que temos visto, impediu a revanche contra o Brasil — que, decerto, varreria tal seleção, e Galvão e a RGT estariam hoje torcendo fervorosamente para alcançar o penta.

Ficamos fora da Copa de 2006 num grupo que tinha Ucrânia, Turquia e Grécia. Ali ficava evidente que havíamos sido relegados ao patamar de uma sub-força. Morten Olsen foi mantido como técnico. 2008 era a tentativa de próxima competição. O sorteio colocava a Espanha, de novo, no nosso caminho, além dos rivais históricos, os suecos. No jogo contra eles, tomamos 3 no primeiro tempo. Empatamos heróicamente, mas aí, no fim, um árbitro portuga marcou pênalti para os adversários, um dos nossos entrou em campo, bateu no luso, criou um celeuma, tiramos o time de campo para não dar sequência à patacoada, fomos punidos, o resultado foi mudado para 3 a 0, multados, vilipendiados e atrapalhados no resto de nossa campanha. Resultado: quarto lugar, atrás da Irlanda do Norte, outra que também enche o saco.

Voltamos meio desacreditados para a Copa, e um jogo foi responsável por isso: 0 3 a 2 lá em Portugal, no início da campanha, depois de estarmos perdendo por 2 a 0 até os 35 do segundo tempo. Só fomos perder no grupo que também tinha a Suécia, a qual ajudamos a eliminar, bem feito, na partida final, para os fracos húngaros, quando já estávamos garantidos. Mas cair no grupo com a Holanda só não é pior do que te houvesse ido para o grupo da Espanha. Ou talvez não, num lado mais vingativo.

O que vale é a bandeira já está ali balançando com o frio dos últimos dias na janela do quarto. A bandeira e o símbolo continuam intactos. As duas camisetas, branca e vermelha, estão fáceis no guarda-roupa para serem vestidas. O chapéu viking está sem pó. Faltam só algumas horas, a expectativa é grande, embora os últimos resultados e a ausência de Bendtner trazem aquele muxoxo, a preocupação e o receio de tomar um sacode dos laranjas que também não têm seu homem de frente. Mas vale a festa, vale cair da cama às 7 e tanto para o país que resolvi adotar como meu, também porque aquele onde eu nasci trata as coisas no futebol como se fosse sempre o máximo, e me irrita demais essa arrogância e esse ar de superioridade que não precisam ser melhor detalhados.

E esse país que eu, descendente de espanhóis, resolvi adotar como meu não se resume ao futebol. É em qualquer outro esporte, é na importância de ser sede de um debate mundial a respeito do clima, é na admiração pelos valores político-econômico-sociais, o uso da energia eólica, a corrupção quase zero, a felicidade top da população, a evidente beleza das mulheres, o Lego, o Patinho Feio e o reino que não é podre, Copenhague, Aalborg e Brondby e outras tantas coisas — tipo as moças desnudas que paravam o trânsito e diminuíram a velocidade e consequentemente os acidentes nas estradas — que até para mim são estranhas porque nunca estive lá e não entendo por que gosto tanto.

Amanhã de manhã não vou pedir um café. Vai ser uma cerveja, provavelmente, não a Carlsberg porque não tive ideia de ir comprar, mas vou torcer, levantar do sofá ou da cadeira na iminência de um ataque, xingar até a morte se Tomasson continuar não fazendo gols e lamentar se vier a derrota que está por vir. Mas todo esse clima, a zueira dos amigos — Fabio Chiorino, o homem do curling e velho amigo dos tempos de faculdade, e Rodrigo Borges, alma podre e outro companheiro dos primórdios de Grande Prêmio, provavelmente me azucrinando —, saber que outros tantos resolveram aderir à torcida, é legal pra cacete, principalmente por ser saudável. E aguenta se aquela negada alva — e que já tem um negro no time, Patrick Mtiliga — conseguir uma proeza, mesmo com aquele mesmo velho Olsen no comando.

Porque torcer e ser Dinamarca é parte da vida.