Blog do Victor Martins
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Apagando com o apagão

SÃO PAULO | A mochila estava nas costas, e a conversa se dava com o amigo quando às 10 e poucos da noite a academia começou a piscar, aguentando uns 50 segundos mais, com erro para mais ou para menos, do que as casas ao lado e as ruas. Ali teve até quem pensasse que […]

apagao1SÃO PAULO | A mochila estava nas costas, e a conversa se dava com o amigo quando às 10 e poucos da noite a academia começou a piscar, aguentando uns 50 segundos mais, com erro para mais ou para menos, do que as casas ao lado e as ruas. Ali teve até quem pensasse que o piscar da luz que lembrava aqueles filmes em que o alarme das usinas denotava a iminência de uma catástrofe podia ser algo até parecido com isso, trocando o som da sirene pelos gritos dos bombados que não largaram os pesos ou os supinos. Vieram as piadas normais de que a conta não havia sido paga, e o gerente da academia, figura das mais agradáveis, aproveitou as pouquíssimas luzes que sobreviveram por causa do gerador para sair cantando “I Don’t Want Nobody, I Don’t Want Nobody Baby”, trocando o “but you” que se seguia por um “tchu-tchu”, e o pessoal ficou lá, esperando que aquilo se tratasse de algo momentâneo, tanto o apagão quanto a apresentação de balada do gerente.   

Vieram as primeiras informações de que a zona setentrional da cidade estava às escuras, das redondezas à Freguesia do Ó. Consegui fazer uma ligação, para casa, mas ninguém atendeu. Depois o celular morreu. Ligação, só emergencial. Em vão, então, minha tentativa de twittar. Insisti, ainda. Fui à sacada, tentei tirar uma foto com o celular, mas todas saíram escuras, sem flash. Celular de merda, pensei, e fiquei uns dez minutos tentando descobrir onde regulava o flash daquela porcaria, então me dando conta que dez minutos importantes haviam passado, e niente de luce.

Tinha uma moça cuja silhueta não era das mais magras ainda em cima da esteira e um cara que ainda usava a ergométrica. Outros dois aproveitavam o feixe daquela luz de gerador para ver onde pegar o peso apropriado, o gerente, naquele humor que só ele tem, pedia desculpa aos alunos que ainda mantinham esperança, uns até falavam em pular na piscina, e a vida passava, mais de meia hora passava, e aquele breu que se estendia por toda São Paulo denotava já uma série de pensamentos, até mais avançados, políticos, literários e filosóficos.

Primeiro porque tivemos de dar importância unicamente para a rádio. A rádio, hoje, é um veículo quase tão relegado quanto os jornais impressos, nestes tempos de “fast food”, de consumo rápido de notícias, o teaser e a impressão de que se sabe por completo do que aconteceu, tempos de internet e TV. Ambos dependentes de megawatts ou quilowatts, e a rádio lá, Bandeirantes, Jovem Pan, Globo, reunindo até jornalistas esportivos que passaram a ancorar suas equipes em torno do apagão que já se alastrava pelo sudeste tupiniquim e outros tantos ouvintes, em torno de um aparelho, como se os anos 50 e 60 materializassem um longo flashback daquelas famílias que ficavam à sala para acompanhar o programa de áudio preferido. Qualquer rádio de notícia ontem deve ter batido recorde de audiência. 

Na saída da academia até o carro, a cena destoante. Alguém deixava o rapaz de camiseta regata na porta da academia, e ele descia atônito, olhando para o espaço incrédulo, lançando um quase olhar de indignação pela ausência de luminosidade. Abriu os braços, o bocó, ainda segurando a garrafa com proteína na mão direita. Ficou um minuto lá, o bocó, esperando que num estalar de dedos a luz voltasse só para que ele fizesse a sequência de tríceps e peito, sendo que bastava a ele exercitar a mente. Mas a mente, enfim, deu um estalo, e o bocó voltou para o carro e foi embora. Creio que, neste momento, o bocó há de entender a situação, do contrário é muito mais do que bocó.   

Nos sete ou oito minutos até a casa, a rádio do carro cantava a situação do caos, relembrando aquele apagão de uma década, buscando as causas e as consequências. Depois, sem ligar ou tirar fotos com flash, ao menos o celular sintonizou na frequência modulada, e a fome bateu, e bateu forte. As quatro velas que já estavam de prontidão serviram para preparar um jantar, e a mãe cozinhava o arroz enquanto eu preparava o molho com queijo para aquele risoto esperto, e o pai chegava do trabalho, contando que havia ficado preso no metrô, mas sorte dele que estava parado justamente na estação. Foi à geladeira e achou a lata de cerveja que já não estava no ponto ideal, abriu e começou a espremer laranja para complemento da refeição improvisada quase à meia-noite.

E lembrei de Saramago. Saramago ensaiou uma vida onde todos eram cegos, mas bem que podia escrever um complemento em que a luz deixasse de ser presente. Imaginei o caos, aí, sim, que seria neste momento de nossa existência regredir uns tantos séculos se a transmissão de energia elétrica acabasse, assim, sem avisar. Homens da idade das cavernas tendo de se readaptar a um novo mundo, buscando alternativas, e sem a internet e a TV, que se tornariam, na verdade, coisas supérfluas diante da necessidade prioritária de alimentação, após nosso lindo povo saquear os supermercados e terminar com sua comida em estoque. O arroz pronto me fez encerrar o pensamento que ia longe. Sentei no chão, mesmo, sei lá por que, talvez por ter me revestido do espírito de um australopitecus, e mandei ver. Mãe e pai cortavam em cubos o que restou do provolone, e lá estava a família reunida como nos últimos anos não esteve.

Lavei a louça e me deitei no sofá com o celular do lado. Falavam as autoridades, o prefeito, o diretor da ANEEL, o representante de Itaipu via comunicado, o jornalista que é mais que a notícia, e peguei no sono, mas aquele sono em que ainda se consegue prestar atenção no que se ouve; o cérebro da gente é uma maravilha, diria minha avó, se eu a tivesse conhecido. Uma hora e tanto depois, passando calor e desconfortável, me preparava para o sono completo. Foi quando a luz voltou.

Diferente do que pensei, a cidade voltou em silêncio. Desci, abri a porta, olhei ao redor. Duas ou três pessoas ali no prédio faziam o mesmo. Tinha gente até ali na praça, conversando. O computador saía do stand-by, a internet e a TV de volta, o programa do Jô que mostrava justamente a entrevista com Ronaldo, os parcos negos no MSN, o Twitter só atualizado de quem estava lá pra cima, quase nenhum e-mail na caixa. Os sites, todos, manchetando em letras garrafais o apagão, e enfim a noção de que havia um certo apavoramento por parte de alguns, iniciada até pelo jornalista que é mais que a notícia, desesperado no caminho para um encontro de negócios, e nego até falando que hackers invadiram Itaipu, e um amigo me contando que a esposa de um outro jornalista reclamava deste por conta do plantão extraordinário, e ele explicando o óbvio da profissão, e ela não entendendo, achando provavelmente que se tratava de uma desculpa. E eu logo vi que horinhas sem luz levam a uma ausência de raciocínio, quase uma lobotomia, porque a grande maioria das pessoas se acomodou na confortabilidade e na rotina do mundo e passa mais o tempo a reclamar do que fazer, a ser o passivo, esperando que o mundo faça o que deveria ser feito por elas.

No fim das contas, o apagão mostrou que muitos apagam junto, por simbiose. Saramago bem que podia traduzir naquele seu modo peculiar esse novo enredo da vida moderna.