Blog do Victor Martins
F1

O homem das pistas sem vida

SÃO PAULO | Um belo dia em 1984, Hermann Tilke, que teve passagens breves pelo automobilismo, resolveu que deveria ter uma empresa em seu nome em prol do esporte onde não teve sucesso como piloto. Colocou o nome sugestivo de Tilke Engineering e escreveu no currículo e nos classificados da época que se especializaria em obras em que pudesse unir seu expertise em […]

TilkeSÃO PAULO | Um belo dia em 1984, Hermann Tilke, que teve passagens breves pelo automobilismo, resolveu que deveria ter uma empresa em seu nome em prol do esporte onde não teve sucesso como piloto. Colocou o nome sugestivo de Tilke Engineering e escreveu no currículo e nos classificados da época que se especializaria em obras em que pudesse unir seu expertise em arquitetura, engenharia civil e eletrônica. Começou pelas beiradas e chamou atenção por construir uma estrada para levar os fãs ao periférico autódromo de Nürburgring. Chamou atenção, na verdade, de Bernie Ecclestone, isso já lá no meio dos anos 90.

Aí Bernie convidou Tilke para uma conversinha, e dela saiu um acordo, meio que em tom experimental, para que o arquiteto revitalizasse o velho autódromo da Áustria, o Österrichring. As longas e lindas curvas e retas foram reduzidas a uma pista de pouco mais de 4 km. Bernie adorou, oh!, e a recompensa de incluir o que passaram a chamar de Zeltweg no calendário da F1 a partir de 1997 funcionou como trampolim para a carreira de Tilke.

A sanha financeira de Bernie, seu “Go-East”, encontrou seu braço direito. A Malásia apareceu na vida do manda-chuva da F1, e lá foi Tilke conceber Sepang. A China achou magnífico, “quelemos colida”, e aí Tilke foi lá agradá-los usando um logograma do alfabeto local como base para o circuito que nasceu em Xangai. Os árabes tinham de enfiar seu dinheiro na F1, Bernie um dia pensou, e aí foi no inóspito Bahrein que Tilke fez um circuito no deserto.  

Os tilkódromos já delineavam suas características: retas longas e freadas bruscas. Era uma ou outra curva ali que trazia emoção e alta velocidade. Os autódromos em si eram mais bonitos pela forma do que pelo conteúdo, obras parnasianas do automobilismo.

Daí mostraram para Tilke um projeto em Kurtkoy, uma cidade contígua a Istambul, cheia de aclives, para mais uma praça que deveria receber a F1. Iluminado, fez uma pista que agradou todo mundo. A tal curva 8, de quatro pernas, foi comparada à Eau Rouge belga quando feita com carros com os motores V10 e V12. Ao arquiteto, finalmente, tiraram o chapéu de forma unânime.  

Outros começaram a ver no arquiteto a única solução do esporte a motor e deram-lhe o desafio de desenhar pistas de rua. Os chineses o chamaram para bolar o traçado de Pequim. Uau!, e Tilke virava também um ótimo rabiscador urbano. Bernie deu Cingapura e Valência em sua mão, enquanto a Indonésia pediu que se encarregasse de fazer um circuito na capital Jacarta. Neste espaço de tempo, entre 2006 e 2008, Tilke também foi o responsável pelo autódromo de Bucareste, na Romênia.

Hoje, qualquer um que pense em erguer uma praça onde ronquem motos ou carros, tem de pensar em Tilke. A Cidade do Cabo, na África do Sul da Copa do Mundo, a Coreia que vai receber a F1 no ano que vem, a Rússia que não quer ficar de fora e vai fazer uma pista para ter a MotoGP e depois a F1, até o Cazaquistão e a Venezuela, e a Índia.

E Tilke fez Abu Dhabi. O dinheiro dos Emirados Árabes é imenso, como se nota. Dubai há muito tempo deixou de ser um polo petrolífero para se transformar talvez na maior cidade que vive de turismo no mundo. É espetacular. Abu, como capital do país, começa a seguir os mesmos passos. O complexo do circuito à beira da marina construída neste ano é um primor, uma excelência. O único pecado é justamente o que deveria ser mais importante, a pista. É a pior que Tilke fez em todos estes anos como o único homem que o mundo considera para tal atividade. É uma expressão máxima e extremista de sua preferência, a de botar o motor ao máximo e usar o freio para reduzir quatro ou cinco marchas violentamente.

Os dois dias de treinos da F1 lá, no crepúsculo dos dias, são mais válidos pelo cenário. Bastou reparar na preocupação que a direção de TV teve em mostrar os barcos e a tal marina, o sol se pondo, os ricos empresários árabes com seus alvos turbantes, o parque da Ferrari, o latifúndio de areia ali perto e o hotel com cobertura colorida. Os carros na pista, também porque a corrida em si pouco vale, eram quase mera consequência de um acordo que movimentou bilhões.

Então o novo automobilismo vai se tornando algo insosso, resultado de uma cabeça que um dia Bernie achou brilhante. Não é nenhum pouco à toa que os fãs fazem apologia a Spa, acharam um absurdo a mutilação de Hockenheim — que resedenhou aquela titica diminuta —, adoram até mesmo à atual configuração de Interlagos e se empolgam com as corridas e decisões daqui. Estas pistas todas aí, tirando a da Turquia e, passando na recuperação Sepang, não têm personalidade.  As pistas novas não têm vida, e logo hão de se transformar em elefantes brancos quando der o estalo em alguém ou quando Bernie vir a deixar este brinquedo todo.

Aquele belo dia em 1984, ao fim e ao cabo, não foi tão belo assim.